quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Economia injusta e Jogo Justo

Há algum tempo surgiu a idéia da campanha Jogo Justo, com o objetivo de diminuir o preço que pagamos pelos jogos. Todos ficaram animados pela possibilidade de pagar menos, mas obviamente eu não.

Provavelmente você já sabe, mas o Brasil tem uma das maiores cargas de impostos do mundo e ao importar um videogame ou um jogo não pagamos menos do que 60% sobre o valor do produto mais o frete. O Jogo Justo pretendia mudar isso.

Em meio ao frissôn inicial, qualquer um que levante um ponto contra algo, é automaticamente considerado um traidor do rei e deve ter sua cabeça cortada, mas esse não foi o motivo pelo qual não me meti, apesar de manifestar minha posição contrária ao projeto.

Primeiro porque conheço o idealizador da campanha, Moacyr, e segundo porque sei como é difícil juntar pessoas para um propósito sem ter outras gritando por perto como aquilo vai dar errado.

Não havia necessidade de fazer uma forte oposição ao projeto mesmo sabendo que daria errado. Quando se tem a possibilidade de fazer um forte argumento contra algo e você sabe que tem uma boa força de convencimento, uma boa opção pode ser o de não fazê-lo e deixar que as pessoas tentem chegar à conclusão sozinhas.

O tempo passou e acredito que a campanha já gastou todo o seu gás inicial. Os primeiros descontentes e manifestantes desapontados já surgiram, então pode-se dizer que o encanto já foi quebrado. Não vejo problema em mostrar os defeitos agora que alguns já os viram.

Para entender por que o Jogo Justo deu/dá/dará errado é necessário entender os conceitos básicos por trás do projeto e também da economia brasileira. Para quem baixar os impostos? Por que eles estão lá em primeiro lugar? São perguntas essenciais que passam despercebidas por instintos básicos de querer o que é melhor pra nós mesmos e de que o governo é só um bando de filhos da mãe.


O Brasil é um país rico, todos sabem, temos muitos recursos, mas também temos uma população incrivelmente numerosa. Esses recursos são divididos de forma muito desigual, criando pontos quentes e frios, com contrastes de qualidade de vida abismais. Basta comparar as maiores capitais como Rio de Janeiro e São Paulo com cidades afastadas do Nordeste.

A base da nossa economia está na matéria prima, minérios, agricultura, pecuária, mercados de commodities, além da manufatura e obviamente o turismo. É basicamente com estes que geramos riquezas a partir do "nada". Pedras no chão viram dinheiro, recursos renováveis como plantas, viram dinheiro, animais que se multiplicam viram dinheiro. Coisas que valiam menos antes, passam a valer mais após serem manufaturadas por pessoas, assim como estrangeiros nos visitam por entretenimento.

É curioso quando pensamos o quão essenciais nós somos. O Brasil está na base da matéria prima e ainda assim não é considerado tão importante quanto realmente é. Isso se deve a forma como o Capitalismo funciona.

O Capitalismo é um sistema baseado em escassez. Quanto menos de uma certa coisa houver, mais ela vale. São os conceitos básicos da Oferta e Procura. Trocando em miúdos, seria como se nós tivéssemos muito fubá, mas não tivéssemos nenhum bolo de fubá, então aceitamos comprar o bolo pagando mais do que ganhamos vendendo o fubá. Como há mais fubá que bolo, ele se valoriza e nós ficamos escravos desse ciclo.

É mais ou menos assim que o Brasil funciona. Nós não temos tradição tecnológica para fabricar aparelhos eletrônicos, mas fornecemos grande parte da matéria prima, comprando-os em seguida. O bolo não existe sem o fubá, mas ainda assim, pagamos mais por ele mesmo sendo parte essencial do processo.


Talvez você se pergunte por que isso é importante. Se é o conceito básico do Capitalismo, o que não tem remédio, remediado está. Seria necessário primeiro estabelecer que o Capitalismo está errado, o que definitivamente não é minha intenção aqui. Mas relevante para a nossa economia é necessário perceber que o Capitalismo é um sistema de pirâmide e nós fazemos parte da base.

Toda a função do Capitalismo é criar um ciclo de escravidão do indivíduo menos pensante em função do mais pensante. Estes termos facilmente se traduzem para indivíduos pobres em função dos ricos.

Sempre haverá uma larga base e um limitado topo na pirâmide. Nunca poderá haver mais pessoas no topo ou no centro do que na base, essa é uma ilusão do Capitalismo, de que todos poderiam subir com esforço e trabalho.

Hoje em dia essa ilusão se dá através do câmbio e do débito. Não quero explicar extensamente como dívidas escravizam, então pensem no seguinte resumo: se todo o dinheiro do mundo fosse $100 e você pegasse $10 em um empréstimo com o banco, você teria que pagar $12 por causa dos juros. Mas como isso seria possível se todo o dinheiro do mundo era $100? Como todo o débito do mundo poderia totalizar $102?

Esse é um sistema de escravidão lógico, é o motivo pelo qual todo o dinheiro circulando no mundo nos dias de hoje não pagaria todo o débito que existe no mundo atualmente. É também o motivo da crise financeira, já que os bancos só precisam ter uma ínfima porcentagem do dinheiro que emprestam, todo o resto dele é virtual.

As novas leis nos Estados Unidos dizem que os bancos agora precisam garantir 7% do que emprestam. Isso significa que pra te emprestar $100 eles só precisam ter $7. Não é preciso ser um gênio pra se perguntar: "Se eu não posso fazer isso, por que os bancos podem?", e menos ainda pra ver que é só uma questão de tempo até a próxima crise financeira, eles só colocaram um pavio mais longo na bomba.

Se você acha que isso não te afeta porque você não pega empréstimos, pense de novo. Aí entra a inflação. A inflação nada mais é do que a personificação do monstro dos conceitos básicos do Capitalismo. Lembra-se? Oferta e Procura. Quanto mais dinheiro há no mundo, menos ele vale.


Então temos o câmbio, que diz quanto a moeda de cada país vale em relação a outras bases. Ele se encarrega de manter os pobres e ricos separados. Constantemente o mundo se volta para o ouro e papéis da maior potência do mundo. Quando alguém perceber que o ouro não vale isso tudo nos dias de hoje, será divertido.

A força de cada país e de sua moeda é medida pela sua riqueza e aí revemos o bolo de fubá. Digamos que quem vende o fubá seja um brasileiro e quem vende o bolo seja um americano. Se o brasileiro vende o fubá por $5 e o americano nos revende o bolo por $10. Quem fica com o dinheiro?

Esse é o famoso jogo da economia. Quando exportamos, nos tornamos mais fortes. Quando importamos, nos tornamos mais fracos. A proporção entre exportação e importação basicamente determina a força do país e da moeda.

Isso significa que a menos que as pessoas parem de comprar bolo, não conseguiremos produzir fubá suficiente para pagar nossas dívidas. O bolo são os produtos industrializados e o imposto de 60% é o freio que o governo tenta botar na nossa economia.

Se você não for tão jovem, deve lembrar-se do Plano Real em seu início, onde foi adotatada uma política de igualdade ao dólar americano. Muitos países já tentaram esse tipo de estratégia e sempre acontece o mesmo. Quebram.

Durante essa época, 1 Real equivalia a 1 Dólar e podíamos comprar muitas coisas a preços "justos". Os eletrônicos estavam a preço de banana. Havia uma sensação ilusória de crescimento e melhora de vida.

Mas essa Maria Fumaça consumia carvão desesperadamente e esse carvão era a nossa reserva interna de dólares. Para manter a nossa moeda a todo vapor, nós queimávamos nossas reservas. Não podia dar em outra.

A bolha estourou e tivemos que ser resgatados pelo FMI, o Fundo Monetário Internacional, que nos emprestou 30 bilhões. Lembra-se sobre débitos? Ficamos escravos do FMI por um tempo. Vale lembrar que não há opção senão pagar, já que a Argentina deu um calote e o monstro da economia voltou para morder sua retaguarda. Se na época que estávamos endividados o Brasil estava fraco e a Argentina gozava de bons ventos, hoje o quadro se inverteu cruelmente.

Outras vezes vejo as pessoas compararem o Brasil com o México, que também era um país marginalizado mas que recebia produtos a preços acessíveis. O que talvez nunca tenham percebido é que eles tem uma vantagem geográfica. O México faz fronteira com os Estados Unidos e todos os anos milhares atravessam ilegalmente para lá.

Tentando combater o problema da imigração, ilegal ou não, os Estados Unidos fizeram um acordo com o México para melhorar a qualidade de vida lá, visando assim que seus habitantes não imigrassem para lá.

Enquanto por aqui houve a ALCA, a Área de Livre Comércio das Américas, que era mostrada como algo lindo, praticamente o sonho de Che Guevara, uma América sem fronteiras... de lá pra cá. Derrubando as tarifas alfandegárias, todos os produtos industrializados entrariam aqui sem impostos.

Os brasileiros que querem consumir esses produtos sofisticados, e tem direito de desejarem algo assim, adoravam o conceito da ALCA. Mas adivinhe só? Todas as barreiras dos Estados Unidos continuavam lá para proteger sua própria economia enquanto nos pintavam como os vilões.


Muitos já ouviram falar que os impostos sobre videogames protegem a indústria nacional e questionam como isso é possível se o Brasil não produz videogames, mas não estamos falando só de um setor da indústria, mas de toda ela.

E são necessários dois para dançar o tango. Outros países utilizam-se dessas mesmas barreiras, se não piores. A Argentina constantemente barra a entrada dos produtos brasileiros da "linha branca", como fogões, máquinas de lavar e geladeiras. Para não mencionar os inúmeros processos que temos na OMC, Organização Mundial do Comércio, contra barreiras impostas pelos Estados Unidos sobre o nosso "fubá".

Quando compramos videogames, jogos e eletrôncios em geral, estamos enviando nosso dinheiro em larga escala para o exterior, enfraquecendo nossa economia. Não pense que o Brasil nunca tentou reverter essa situação, pois foi incentivada a instalação de empresas aqui através de isenção de impostos, a famosa Zona Franca de Manaus.

Não pense também que as empresas são coitadinhas, pois por muito tempo elas adoraram essa proposta e viveram muito bem com ela. No entanto, o cinto apertou. Sabemos que Sega e Nintendo estavam no Brasil oficialmente e ambas as empresas estavam tomando uma surra da Sony na época do PlayStation 1 e 2 nos principais mercados, Estados Unidos, Japão e Europa.

De repente, vários problemas que sempre existiram começaram a virar causas para elas irem embora. Não coincidentemente também foi nessa época que produzir na China virou o padrão. Para cada produto eletrônico a um preço acessível que vemos hoje, há sangue de chineses trabalhando por um salário desumano. Não devemos ter vergonha nenhuma da proteção que o governo nos oferece no setor trabalhista.


As empresas visam o lucro a qualquer custo sem se importar conosco. Nunca admitiriam isso e sempre farão parecer que estamos fazendo o melhor pra nós mesmos. Por isso não me surpreende que tantas empresas famosas apoiem o Jogo Justo, é muito fácil pra elas. Assim como há muitas lojas envolvidas com a campanha e o objetivo delas transparece facilmente, como o das empresas citadas.

O primeiro grande evento que a campanha tentou foi um "Dia sem Imposto", algo que muitos setores fazem, um dia em que vendem seus produtos amargando o prejuízo do que pagaram de imposto em troca de mostrar para o governo como o aumento de consumo através do preço mais acessível poderia compensar a perda do imposto.

Com nenhuma surpresa as lojas limitaram-se a oferecer alguns jogos encalhados a preços nada impressionantes que foram superados nas semanas seguintes em promoções de final de ano. Quem mais foi prejudicado foram os usuários mais fiéis, que compraram só para demonstrar apoio à campanha.

A forma mais fácil de se descobrir as reais intenções de uma campanha é ver quem a apoia e quem mais vai ganhar com isso. As mesmas empresas que visam o lucro a todo custo. Longe de ser um ataque pessoal ao idealizador, pois com certeza Moacyr partilha o mesmo sonho que nós, um mundo em igualdade, e acredita estar tomando o melhor passo para tal.

Mas o mundo é injusto e não é pelos jogos que temos que começar a mudá-lo.

10 comentários:

  1. Excelente texto, me fez refletir um pouco sobre a idéia do projeto e sobre os impostos no Brasil.

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  2. a materia é grande mais é bem interessante
    mais vc só esqueceu de uma coisa
    como varios países que também são exportadores de matéria prima e não precisam de uma carga tributaria tão alta para segura as riquezas ?

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  3. Amigo, a balança comercial(exp-imp) sempre foi irrelevante na balança de pagamentos do governo. Oque sustenta o crescimento do PIB é o nosso vasto mercado consumidor.

    Além disso, quem determina o preço das comodities (nossas exportações) e o valor da nossa moeda não somos nós, mas sim a China e os EUA com suas políticas cambiais e monetárias.

    Logo, acho que não adianta taxar absurdamente os games importados se o preço do seu produto exportado está exposto a tantos riscos. Para melhorar a qualidade da balança comercial, o Brasil deve lutar contra as políticas protecionistas dos países ddesenvolvidos.

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  4. Mas a nossa moeda de troca das politicas protecionistas é justamente barrar os produtos industrializados.

    "Vocês não vão acabar com os subsidios agricolas? Então não venham com seus produtos pra ca!"

    Você regula a balança comercial, ja que não consegue competir com os produtos agricolas do exterior, mas não importa produtos em grandes escalas.

    O que as empresas querem é fabricar na China, exportar para o Brasil sem impostos e montar nas costas do governo. Enquanto os EUA e Europa fazem concorrencia desleal subsidiando seus produtos agricolas.

    Assim até eu quero governar um país.

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  5. É a primeira pessoa que parou 5 segundos antes de falar, parabéns pela coluna.

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  6. Muito interessante. Eu, sendo leigo no assunto, achava atraente o projeto. Agora ja não tenho mais aquela certeza

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  7. Excelente texto...mas vi muito mimimi!
    Muita coisa embasada em teoria econômica, parabéns, você não é um troll, mas somente no último parágrafo disse o que pensava! Se não nos mover, nunca iremos sair da zona de estagnação. Já que os políticos não o fazem, temos de fazer por onde mais nos indigna (não estou dizendo que é uma necessidade maior, como saúde, educação...).
    Um único setor que mal existe no país irá gerar uma crise com reação em cadeia?!
    O projeto também visa "fazer o bolo", no entanto, isso é uma ação a longo prazo, pois mal temos tecnologia e infraestrutura. A visão do projeto tende a mudar essa realidade para que tenhamos o fubá e o bolo.

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  8. Estou impressionado pela análise macroeconômica. Realmente, eu não esperava ler algo assim em um blog sobre games.

    Está de parabéns.

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  9. Propaganda comunista disfarçada.

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